Durante um bate-papo recente no podcast Fala VJ, o guitarrista do Ira!, Edgard Scandurra, foi questionado sobre a letra de um dos maiores hits da banda, “Pobre Paulista”, que apesar do sucesso, hoje é vista como uma música bastante polêmica.
Veja a declaração de Edgard Scandurra sobre “Pobre Paulista”, faixa do álbum “Vivendo e Não Aprendendo” de 1986:
“‘Pobre Paulista’ foi o maior equívoco que eu cometi na minha vida. Eu acho que eu quis ser mais punk do que eu podia ser realmente. Eu tinha uma noção do punk assim, ‘o punk é feito para chocar as pessoas’. E a gente estava numa ditadura, então, eu era tão ingênuo, que eu usei para falar dos meus professores da escola, para falar dos meus pais, eu usei uma metáfora que atingia muito mais gente além desse meu mundinho estudantil. Eu estava falando de gente da minha terra, de gente do meu sangue, não quero ver mais gente feia, não quero ver mais ignorantes… Isso aí abriu espaço para uma interpretação preconceituosa da letra, e era uma coisa metafórica, eu estava usando metáforas, para falar de pessoas que não dava para falar diretamente, e para atingir essas pessoas eu usei uma metáfora que falava de coisas muito mais sérias, muito mais agressivas.
Foi uma falta de informação mesmo, porque quando eu fiz essa letra eu tinha dezesseis ou dezessete anos, então eu não tinha a noção exata. É aquela coisa que hoje chamam de racismo estrutural, vamos dizer assim. Eu acho que aquilo estava dentro de mim de uma maneira tão grande que eu falei sem pensar sobre uma coisa que estava atingindo raças, atingia povos, atingia pessoas. Ninguém se dava conta.”
Em seguida, o apresentador e produtor cultural, Maurício Gaia relatou a sua experiência com “Pobre Paulista” quando assistiu a um show do Ira! em Fortaleza em 1996, quando a banda tocou a canção e acabou sendo vaiada e xingada pelo público. Maurício relatou que ao término da música, o vocalista Nasi xingava o público de volta, enquanto Edgard tentava esfriar os ânimos e esclarecer que havia uma mal-entendido ali.
O guitarrista comentou:
“É, então, nem a gente estava entendendo. Porque eu pensava assim, tinha alguma coisa na minha cabeça que falava, ‘espera aí, esses dois versos aqui…’. porque a letra inteirinha era uma letra bem adolescente, bem rebelde. Aí de repente pára numa rima muito infeliz, que é ‘não quero ver mais essa gente feia, não quero ver mais os ignorantes’, ok. Hoje em dia a gente sabe muito bem que essa ‘gente feia’ não tem absolutamente nada a ver com estética, com beleza, com formato de nariz, de cabelo, de olho, etc. É uma feiúra interna, uma coisa do espírito, e ‘ignorante1 não é o cara que não sabe ler e escrever, às vezes o ignorante é um cara letrado, que é um preconceituoso, que é um fascista, entendeu?
Teve um que faleceu recentemente, que fez escola com todo mundo, Olavo… E era o filósofo, né? Então tinha essa coisa. O lamentável disso foi a rima, ‘não quero ver essa gente feia, não quero ver ignorantes, eu quero ver gente da minha terra, eu quero ver gente do meu sangue’… É bairrismo, bairrismo ainda passa, mas sangue… a coisa fica xenofóbica. E eu nunca tive essa intenção, mas alguma coisa falava assim, ‘Tudo bem, é punk rock, não é tão ruim assim’. Uma cabeça lamentável.”
Edgard acrescentou:
“Demorou para cair a ficha. Essa música é antes do Ira!, essa música veio do subúrbio. E o paulistano já é olhado por outros lugares como um cara meio elitista, né? Por ser um lugar um pouco mais rico e tal. Então mais pra frente em meados de noventa, quando a gente foi tocar no Nordeste, não sei se foi esse show, mas a gente tocava essa música em tudo quanto é lugar, às vezes a gente abria o show com essa música.
E tocava no rio Janeiro, a gente cantava ‘Pobre São Paulo!’, eles ‘Filha da puta!’… ‘OOOOOO pobre paulista!’… ‘filha da puta!’… e ficava aquela rivalidade meio brincando e tal e não caiu a ficha até a gente ir tocar no Nordeste. Passou um rapaz negro com cartaz bem grande escrito ‘Pobre paulista é o caralho’. Cara, aí caiu a ficha, saca? Eu falei, ‘não dá mais para tocar essa música.’
Aí começou ‘Ah, essa música é racista, essa música é preconceituosa, essa música não sei o que’. E um monte de gente começa a perguntar. Eu falei, ‘Cara, essa música a gente não pode tocar nunca mais, vamos tirar do repertório’. Então desde noventa e pouco a gente não toca mais essa música, mesmo em São Paulo, que é só a gente por o pé no palco que as pessoas pedem ‘Toca Pobre Paulista’. E a gente nunca mais tocou essa música. A gente faz só o refrão, ‘Parou, pensou e chegou a essa conclusão’. Obrigado e tchau. Nunca mais tocamos. Caiu a ficha.”
Assista a entrevista completa:
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